
Combate à Corrupção Revisitado: Cinco Anos de uma Injustiça Selectiva
IRENE ALEXANDRA NETO
Escrevo não apenas como cidadã preocupada com a justiça em Angola, mas também como esposa de Carlos Manuel de São Vicente que, há cinco anos, vive esta realidade de forma directa e dolorosa.
O combate à corrupção foi apresentado em 2017 como bandeira central da governação angolana. A sua legitimidade é inquestionável: nenhuma sociedade pode prosperar se a corrupção se tornar regra.
Porém, esta luta não se pode confundir com inveja e perseguições pessoais, arbitrariedades ou violação de direitos fundamentais. Quando isso acontece, transforma-se num instrumento de injustiça e fragiliza o próprio Estado de direito.
O caso de Carlos Manuel de São Vicente tornou-se um exemplo preocupante dessa distorção. Julgado num processo marcado por irregularidades processuais, ausência de provas consistentes e sucessivas violações legais, cumpriu, no dia 22 de Setembro, o quinto ano de prisão, de liberdade em Viana. Ao longo deste período, foram múltiplas as ocasiões em que a lei determinava a sua libertação, e ainda assim, tal foi negado.
- Em 2020, 2021 e 2022, os pedidos de habeas corpus foram ignorados, mantendo-se uma prisão preventiva para além dos prazos legais.
- Em 2023, apesar do Parecer 63/2023 do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, que solicitou a sua libertação imediata, Angola não cumpriu as suas obrigações internacionais.
- Em 2024, atingida metade da pena, a libertação voltou a ser bloqueada por inércia administrativa na Direcção Nacional dos Serviços Prisionais e no Tribunal de Comarca de Luanda, em desconformidade com a lei.
- Em 2025, pela quarta vez, foi negada a liberdade condicional após dois terços da pena, em clara violação do Código Penal e do Código do Processo Penal.
Esta sucessão de decisões levanta uma questão inevitável: que espécie de combate à corrupção é este que, em vez de respeitar a lei, sistematicamente a contorna?
A justiça não pode ser confundida com vingança. Deve assentar na legalidade, na transparência e no respeito pela dignidade humana. No entanto, a forma como este processo foi conduzido transformou empresários em inimigos políticos, confiscando bens sem provas de corrupção e afectando famílias inteiras, incluindo terceiros inocentes e dependentes económicos que nada têm a ver com as acusações.
As consequências sociais foram graves. Negócios legítimos encerraram, empregos desapareceram, riqueza foi destruída sem qualquer estratégia de substituição produtiva. É legítimo perguntar: isto é justiça ou é vingança política? Como podem as famílias sobreviver privadas de todo o seu sustento? Porque perseguir famílias até ao exílio forçado, apreendendo as suas habitações? Acusar não é provar. Quem acusa deve provar. Não é o inocente que tem de provar a sua inocência. Tal prática levanta sérias preocupações quanto ao respeito pela lei e à protecção de direitos fundamentais e de garantias, consagrados na Constituição angolana e em tratados internacionais ratificados pelo País.
Do ponto de vista jurídico, a questão é igualmente alarmante. O artigo 36.º da Constituição garante o direito à liberdade e à segurança. O artigo 13.º consagra a prevalência das convenções internacionais ratificadas, entre as quais o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ao violar os artigos 9.º e 14.º do primeiro e 9.º, 10.º e 11.º do segundo, Angola expôs-se à censura internacional e fragilizou a credibilidade do seu sistema judicial.
Perante as ilegalidades e irregularidades do processo judicial e a prisão de 22 de Setembro de 2020, foi apresentada uma queixa às Nações Unidas em 2021. O Conselho de Direitos Humanos da ONU emitiu a Opinião n.º 63/2023, em 14 de Novembro de 2023 e demandou a libertação imediata de São Vicente. Angola não cumpriu.
Os bens apreendidos ilegalmente não eram meros símbolos de ostentação: eram negócios florescentes, que empregavam mão-de-obra nacional, formavam e profissionalizavam jovens. Ao serem abruptamente encerrados, o desemprego e a exclusão aumentaram, e a riqueza destruiu-se. Quantos empregos foram eliminados? Quantos foram criados para os substituir? Esta contabilidade negativa, apresentada como redistributiva, serviu o País? Ou apenas beneficiou alguns novos detentores, premiando-os sem experiência nem esforço, quase sempre de forma pouco transparente?
A metáfora é conhecida: o poder apresenta-se como um Robin dos Bosques moderno, retirando bens aos “ricos” para, supostamente, os devolver aos “pobres”. Mas, como lembrava a minha sogra Ilda, “tirar não é pôr”. Sem investimento produtivo, sem contenção de custos, sem visão nem estratégia, o que se tira depressa se esgota. O povo entretém-se por um momento, como no sangrento Coliseu romano, mas logo se apercebe de que voltou a zero.
É verdade que a justiça é feita por homens e, como tal, é falível. A justiça errou por não respeitar a lei, por decidir sem provas, por adoptar legislação inconstitucional, por pressa desmedida na aprovação de medidas insuficientemente ponderadas, por constrangimentos políticos ou institucionais. Mas, se errou, tem de ter a humildade de o admitir. A grandeza de um sistema judicial não está em nunca falhar, mas em reconhecer os seus erros e reparar as injustiças causadas. Persistir em decisões arbitrárias não reforça o combate à corrupção — fragiliza-o, transformando-o num espectáculo punitivo que destrói a confiança social.
Se a justiça se converte em espectáculo, perseguição e vingança, e não em legalidade e verdade, que futuro podemos esperar deste presente justicialista? Só pode ser um de fragilidade institucional, descrédito social e insegurança jurídica. Justiça sem justiça não constrói futuros radiantes.
No quinto ano da sua detenção, São Vicente enfrenta graves problemas de saúde, que motivaram o seu recente internamento hospitalar em Luanda. Isto acrescenta urgência à questão. O direito de qualquer cidadão a cuidados médicos adequados e ao devido processo é inegociável: é um imperativo constitucional e humano.
O combate à corrupção só será eficaz se for conduzido dentro da lei e com respeito pelos direitos fundamentais. São Vicente tem direito a ter direitos. Quando casos como este são deixados prolongar-se neste quadro de irregularidades, o que se constrói não é justiça, mas arbitrariedade.
Após cinco anos de prisão, com a vida em risco e perante sucessivas ilegalidades, é tempo de corrigir este erro. O respeito pelo Direito internacional, pela Constituição e pela legislação penal aplicável impõe a libertação imediata de Carlos Manuel de São Vicente.
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