Condenação sem factos: o verdadeiro banquete

A condenação de São Vicente

No dia 24 de Março de 2022, Carlos São Vicente foi condenado a 9 anos de prisão, pelos crimes de peculato, fraude fiscal e branqueamento de capitais. Foi ainda condenado a pagar ao Estado uma avultada quantia e todos os seus bens apreendidos, incluindo as muitas dezenas de edifícios que construiu e saldos de contas bancárias, foram declarados perdidos a favor do Estado.

A notícia não terá causado surpresa na opinião pública, pois já havia sido publicamente condenado; afinal, a Procuradoria Geral da República e o Estado, através dos órgãos de informação que controla, já havia feito a sua propaganda e declarado publicamente a culpa de São Vicente, declarando os seus bens como “activos recuperados”.  Os fieis depositários dos seus bens rapidamente anunciaram o destino dos bens apreendidos. Vários comentadores, sem qualquer conhecimento dos factos do processo, certamente impressionados pelo saldo de contas bancárias reveladas, presumiram afanosamente a origem ilícita dos fundos. 

Até mesmo alguns juristas, sem o pudor que a ética profissional lhes impõe, condenaram publicamente São Vicente. Por que não se interrogaram esses juristas sobre a obscena apropriação ilegal dos bens de São Vicente e a sua distribuição por diversos organismos públicos, em violação dos mais elementares princípios constitucionais do arguido? Como podem considerar normal que o arguido não tenha podido ser representado pelo advogado que constituiu no processo?  Por que não se deram ao trabalho de fazer a simples aritmética do prazo de prisão preventiva para perceberem que São Vicente foi mantido preso ilegalmente durante mais de 18 meses sem julgamento? Que apreciação crítica fizeram esses juristas do despacho de pronúncia e da sentença, ambos constituídos por generalidades e conclusões, sem a narrativa de factos concretos susceptíveis de incriminar São Vicente?

A prisão preventiva

Não bastava que São Vicente tivesse sido preso sem provas contra si e logo após ter sido declarado inocente numa investigação levada a cabo pela PGR em 2020, em resposta a carta rogatória suíça.  O processo veio comprovar a determinação de ser mantido preso a qualquer custo, mesmo que fosse necessário espezinhar a lei e subjugar magistrados judiciais.  Para isso muito pode ter contribuído o facto de São Vicente não ter cedido quando foi ilegalmente intimado a entregar “voluntariamente” os seus bens. 

Uma das evidências mais marcantes desse propósito (de ser mantido preso a qualquer custo) surgiu em Outubro de 2021 quando, estando o prazo de prisão preventiva de São Vicente prestes a expirar, foi criado um artifício ilegal para não ser libertado. A sua prisão preventiva foi prorrogada por 4 meses, a pretexto de existir um recurso interposto para o Tribunal Constitucional, quando, na verdade, tal recurso não chegou a ter lugar, por não ter sido admitido. Este expediente permitiu que São Vicente não pudesse ser libertado antes do julgamento. Entretanto, os apelos para a sua libertação por motivo da sua frágil condição de saúde, devidamente comprovada, foram sendo sempre ignorados de forma cruel e desumana, apesar do elevado risco de vida de São Vicente, que aliás ainda persiste. 

Igualmente chocante foi o episódio ocorrido com o acórdão proferido. Uma das sessões da audiência de julgamento não contou com a presença contínua de uma Mma. Juíza que, por isso, não assinou a respectiva acta e, também por esse motivo, votou contra o acórdão. Uma sessão da audiência de julgamento sem a presença de um juiz é nula. Não se trata de apreciar se os juízes presentes eram ou não a maioria; ou se, na ausência de um juiz os restantes tinham quorum para prosseguir. A lei impõe que todos os juízes estejam presentes em todas as sessões de julgamento. Sabia o Mmo. Juiz Presidente do colectivo que era obrigatório anular e repetir essa sessão e as seguintes. Não o fazer seria incorrer consciente e deliberadamente numa gravíssima ilegalidade, que a lei define como constituindo crime de prevaricação. Porém, mesmo considerando a anterior prorrogação ilegal de 4 meses de prisão preventiva, restavam escassos dias até esse novo prazo expirar.  Não havia mais tempo para repetir aquelas sessões, sob pena de São Vicente ter que ser obrigatoriamente libertado. Perante o dilema – seguir a lei ou obedecer a outros interesses – o Mmo Juiz Presidente do Colectivo, secundado por outro Mmo. Juiz, optou pela condenação de São Vicente contra a lei, sabendo que o acórdão terá forçosamente que ser anulado. Deste modo, com essa condenação ilegal ganhou um novo prazo: o da prisão preventiva até trânsito em julgado da decisão condenatória. Mas, que interesses superiores ditaram que tivesse sacrificado a sua consciência e a sua dignidade, bem como o dever de imparcialidade e o princípio da legalidade, ao ponto de se sujeitar a responsabilidade criminal pelo acto praticado?

O surgimento das AAA

São Vicente foi condenado por, entre 2000 e 2005, ou seja, há mais de 17 anos, se ter alegadamente apropriado de sociedades constituídas pela SONANGOL, sem autorização e sem o respectivo pagamento; trata-se das sociedades conhecidas por AAA.

1. A verdade é que:A transmissão de participações na sociedade holding AAA SERVIÇOS FINANCEIROS LDA foi previamente aprovada por deliberação unânime do Conselho de Administração da SONANGOL, como consta das respectivas actas juntas ao processo. 

2. As transmissões de participações foram autorizadas pela ANIP, a importação de capitais foi licenciada pelo BNA e todo o seu processo legal foi respeitado até às respectivas escrituras notariais e seu registo, procedimentos legais que o acórdão resolveu simplesmente ignorar.

3. O pagamento de todas as participações adquiridas está demonstrado, entre o mais, pelas contas das AAA dos exercícios de 2001 a 2005, devidamente auditadas por prestigiadas auditoras internacionais, o que o tribunal decidiu igualmente ignorar.

O tribunal decidiu contra a prova existente.

Os prémios de seguros

Para a condenação de São Vicente pelo crime de peculato, considerou ainda o tribunal que São Vicente, através das suas sociedades, cobrava prémios de seguros muito elevados e inflacionados, a que fazia acrescer comissões indevidas.

E como o comprova?

  • Com meras opiniões de vários declarantes, aliás de uma forma geral hostis a São Vicente e sobretudo mais preocupados com a sua carreira como servidores do Estado.
  • Com um denominado “relatório de auditoria”, que mais não é do que um escrito sem data, sem nome de autor, sem assinatura, sem o timbre de qualquer instituição e sem destinatário, sendo, por isso, um documento anónimo, não admitido como meio de prova para condenação do arguido; nenhum declarante assumiu a autoria desse escrito e, por isso, as afirmações, aliás falsas, nele contidas, não foram sustentadas. Mais ainda: esse denominado “relatório de auditoria” não foi, na verdade, antecedido de nenhuma auditoria e terá sido produzido somente para que o negócio de resseguro e de corretagem viessem a ser entregues a terceiros.

O acórdão condenatório foi buscar a esse documento anónimo números absolutamente fantasiosos, sobre alegados danos provocados por São Vicente à SONANGOL e ao país, que não são demonstrados nem sustentados em quaisquer evidências.

Um responsável por uma instituição pública, que produziu para o processo uma carta contendo várias afirmações acusatórias contra São Vicente, declarou em plena audiência de julgamento que não podia sustentar essas afirmações pois apenas assinou a referida carta, mas não a escreveu nem é responsável pelo seu conteúdo.

A condenação não se baseou em factos concretos, mas em simples generalizações e conclusões não fundamentadas.

A actividade de seguro e resseguro das sociedades AAA foi sempre transparente; os prémios de resseguro eram determinados pelas grandes resseguradoras internacionais, de ranking máximo, para elevada protecção financeira das actividades petrolíferas, bem com pelas resseguradoras cativas das operadoras; e, finalmente, no processo de negociação e aprovação dos prémios intervinham as operadoras, as associadas, a SONANGOL e o Presidente da Comissão de Operações do Bloco.  Neste contexto, não havia nem podia haver sobrefacturação ou inflacionamento de prémios.

A fraude fiscal

Não há receitas fiscais auferidas pelas sociedades AAA com actividade em Angola que não tenham sido devidamente declaradas e tributadas. Assim o comprovam as contas auditadas de todas essas sociedades.

Nas operações comerciais com as sociedades relacionadas, ou seja, com as sociedades AAA constituídas noutras jurisdições, não existe qualquer benefício fiscal. Foi oportunamente elaborado um estudo de preços de transferência, por auditora de insuspeito reconhecimento e prestígio, que comprova que as comissões de cedência da AAA SEGUROS SA estão em linha com as praticadas neste ramo no mercado internacional. 

Então por que foi São Vicente condenado por este crime?

O acórdão simplesmente considerou, sem qualquer base legal, que os rendimentos auferidos por sociedades AAA detidas noutras jurisdições, designadamente uma resseguradora e duas sociedades de corretagem, deveriam ter sido declarados em Angola quando, na verdade, os prémios de resseguro e comissões de corretagem nele incluídos são um custo da AAA SEGUROS SA e não uma receita. Nenhuma disposição legal foi invocada no acórdão. Não existe qualquer liquidação de matéria colectável para esse efeito, mas somente um número global extraído do acima referido documento anónimo.

Mas se assim fosse, por que motivo nunca a ENSA declarou em Angola esses prémios e comissões de corretagem? Por que motivo nunca a corretora da ENSA pagou impostos em Angola?

Branqueamento de capitais

O branqueamento de capitais existe somente quando lhe estão subjacentes determinados outros crimes. Porém, não há crimes anteriores. 

Com ganhos da sua actividade fez, publicamente, o que nenhuma resseguradora ou corretora estrangeira antes tinha feito nem actualmente faz:  criou riqueza, investiu-a no país e criou milhares de postos de trabalhos. 

Todo o dinheiro ganho por São Vicente na actividade seguradora, resseguradora, imobiliária, hoteleira e outras aplicações, está justificada até ao último cêntimo.

Agora, por meio de um processo ilegal, o Estado apropriou-se dos seus bens. Este é o verdadeiro banquete. 

E agora?

Pese embora a injustiça dos procedimentos contra São Vicente, quer no presente processo quer em outros processos igualmente mediáticos, foram dadas provas inequívocas da imparcialidade, independência e até coragem de alguns magistrados judiciais que neles intervieram, sem submissão a outros poderes, o que muito dignifica a justiça angolana. Não seria justo generalizar a subordinação da magistratura judicial a interesses alheios à administração da justiça, mesmo quando essa pressão se exerce intensamente; os magistrados das várias instâncias dos órgãos judiciais do país constituem a reserva moral e legal de todo o edifício social e a garantia de boa administração da justiça a todos que dela necessitem independentemente da sua condição social: em resumo, constituem o último baluarte na defesa do Estado de Direito. 

Aguardemos serenamente que justiça se faça neste processo.

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