
Pilatos e o Silêncio dos Inocentes
ARTUR QUEIROZ
Carlos São Vicente, economista e empresário angolano, filho da Ilda Rodrigues e do jornalista Acácio Barradas, meus amigos, foi julgado no Tribunal da Comarca de Luanda, 3ª Secção da Sala dos Crimes comuns. Os meritíssimos magistrados que o julgaram não são ocupantes estrangeiros como Pôncio Pilatos, que julgou e condenou Jesus Cristo. Mas neste sábado de Aleluia é bom lembrar que ele é tão inocente como o mais inocente dos angolanos. A sentença condenatória foi alvo de recurso e, portanto, ainda não transitou em julgado.
A defesa de Carlos São Vicente demonstrou durante a audiência que há uma evidente ausência de fundamentação das decisões, a violação do princípio da presunção de inocência, a violação do direito a escolher o advogado, houve intimidação por parte de agentes do Ministério Público, foi vítima de prisão preventiva ilegal e, entre outras ilegalidades, esta que é gravíssima: Uso de prova proibida contra ele.
Eis o que diz a Defesa: “É sabido que a acusação e a pronúncia se socorreram de um denominado ‘Relatório de Auditoria do Seguro Petrolífero’, que não tem data, não identifica o autor e não tem assinatura. É, para todos os efeitos, um documento anónimo, cuja utilização é proibida por lei. Mas foi reiteradamente usado, como se as afirmações ali escritas fossem factos inquestionáveis e só por essa razão é que o arguido responde em juízo. Malgrado o desesperado esforço do Ministério Público em ‘branquear’ e valorar tal escrito, este continua a ser um documento anónimo, cuja utilização, sem qualquer dúvida, é proibida por lei.”
Carlos São Vicente tem um direito que reiteradamente lhe negam: A Opinião Pública Angolana ter acesso à verdade dos factos e não apenas o que a Acusação quer que se saiba. Todas e todos devem saber que no processo ele foi vítima de ocultação de prova permitida. Diz a Defesa:
“O Ministério Público tudo fez para ocultar a investigação levada a cabo em 2020, na sequência de uma carta rogatória das autoridades suíças, e na qual concluiu e comunicou que, no exercício das suas actividades, o arguido não cometeu qualquer crime. Este veredicto de inocente foi comunicado às autoridades suíças em 14 Agosto de 2020. O Ministério Público considerou irrelevante essa investigação e essas conclusões, escondendo-as da opinião pública e dos presentes autos. Ironia, não é? Usa-se prova proibida e oculta-se prova imprescindível. Perguntamo-nos: Esconder uma investigação não constitui falta de idoneidade e de imparcialidade?” Responda quem de direito.
O Ministério Público investigou e concluiu: “No exercício das suas actividades, o arguido não cometeu qualquer crime”. E foi isso mesmo que informou às autoridades judiciais de Genebra. A Defesa de Carlos São Vicente considera a investigação do Ministério Público, comunicada em 14 de Agosto de 2020 como “prova idónea, fundada, lícita, legal. É a que se invoca e que em nenhum momento aponta para uma conduta censurável por parte do arguido. Sobre a restante prova documental (anónima, não datada, não identificada, não reconhecida, etc.) já foi antes referida a sua ausência de valor, e como a lei expressamente a proíbe e afasta do nosso ordenamento jurídico, nada mais haverá a acrescentar. E o primado da prova documental sobre a prova testemunhal é um princípio que prevalece, ademais nestes autos, porquanto a prova testemunhal assentou numa disparidade de declarações prestadas em sede de inquérito, instrução contraditória e ou julgamento, e em testemunhas e declarantes cujo conhecimento não é próprio, é indirecto ou de ouvir dizer, e de emitir opiniões, (e espantosamente souberam proferir afirmações constantes de relatórios ou cartas sobre matérias não vivenciadas, nem devidamente fundamentadas), isto é, que não pode ser valorado.”
A Defesa demonstrou em Tribunal que existem “oblíquos interesses paralelos”. Esta parte é de extrema gravidade e exigia a abertura de outro processo por parte do Ministério Público. Que interesses são esses e quem foram os interessados? A Defesa responde:
Alguns factos trazidos aos autos revelam notórios indícios de interesses com o objectivo de apropriação do negócio do grupo AAA por terceiros. Senão vejamos: a) O ex-PCA da ARSEG (Aguinaldo Jaime) foi nomeado para o cargo em finais de 2013. b) Ficamos a saber que imediatamente contratou a MARSH e o senhor José Gomes como consultores da ARSEG. E quem é a MARSH? É a corretora de resseguro que havia trabalhado com a ENSA durante quase 25 anos. Já era corretora de resseguros da ENSA quando o Dr. Aguinaldo Jaime trabalhou na ENSA, nos anos oitenta. c) A MARSH perdeu o negócio de corretagem do resseguro petrolífero quando a liderança desse co-seguro foi atribuída à AAA SEGUROS SA. d) A MARSH estava ávida de recuperação desse negócio. O que veio a conseguir em 2016, com a ENSA, e fruto da sua colaboração com o Dr. Aguinaldo Jaime. e) O relatório de auditoria do seguro petrolífero surgiu no mandato do Dr. Aguinaldo Jaime na ARSEG. Este admite que ouviu as opiniões da MARSH, mas não precisou ou não quis ouvir a posição da AAA SEGUROS. f) O dito “relatório de auditoria” pressupõe, naturalmente, a existência da dita auditoria. Mas não existe. Não foi feita qualquer auditoria ao seguro petrolífero, como admite o Dr. Aguinaldo Jaime. Logo, o relatório simulou haver uma auditoria que o precedeu, o que é mentira. O dito relatório é uma fraude, um embuste. g) O relatório está pejado de considerações pessoais pejorativas, e ameaças às companhias petrolíferas, sem preocupação de rigor técnico ou fundamentação; percebe-se que tinha um objectivo concreto, o de “arrasar” a AAA. h) O dito relatório não tem data, nome ou assinatura do seu autor. E não está sequer feito em papel timbrado da ARSEG. Havia a clara intenção de ocultar a sua origem para não comprometer quem tinha interesses oblíquos, mas paralelos aos da AAA. i) A ARSEG ou o seu PCA tiveram reuniões com a SONANGOL e com o MINISTÉRIO DAS FINANÇAS, mas não há notícia de que esse relatório tenha sido formalmente remetido a estas entidades; foi-lhes “informalmente” entregue, sempre com o cuidado de omitir a sua origem e autores (…) Não cuidou o ex-PCA da ARSEG (Aguinaldo Jaime) de, em momento algum, contactar a AAA SEGUROS e lhe dar oportunidade de se defender das acusações que estavam a ser fabricadas. Agora se compreende porquê: a AAA SEGUROS não poderia tomar conhecimento dos interesses oblíquos ou dito de outra forma, da conspiração em curso contra si. k) Como seria de esperar, a liderança do co-seguro terminou nas mãos da ENSA e a corretagem do resseguro ficou novamente com a MARSH, que tanto por ela ansiava e com grande benefício, e graças aos bons ofícios do ex-PCA da ARSEG (Aguinaldo Jaime). Não tardou que, depois de 2016, em várias plataformas digitais surgissem denúncias de gestão danosa na ARSEG e na ENSA respeitante ao resseguro petrolífero. Os PCA da ARSEG e da ENSA vieram, por coincidência ou não, a ser exonerados exactamente no mesmo dia.
A magistrada Patrícia Carla de Araújo Pereira fez parte do colectivo que julgou Carlos São Vicente. Votou vencida o Acórdão condenatório e explicou porquê: Durante o julgamento existiu uma “restrição intolerável do princípio do contraditório”. O arguido apresentou como testemunhas José Eduardo dos Santos, antigo Presidente da República e Manuel Vicente, antigo Vice-Presidente da República. Nem um nem outro foram ouvidos na audiência mesmo sendo claro que são testemunhas imprescindíveis para o apuramento da verdade dos factos. A meritíssima magistrada, na sua declaração de voto, escreve: “O Tribunal não cuidou que essas testemunhas fossem efectivamente ouvidas ou que fosse devidamente justificada a impossibilidade da sua audição, o que se impunha, sem o qual, a valoração de prova está incompleta porque falta a prova que foi solicitada pela parte e da qual a mesma não prescindiu”.
O apuramento da verdade dos factos exigia que o Tribunal enviasse ofícios ao Instituto Nacional da Segurança Social (INSS), à Administração Geral Tributária (AGT), ao Banco Nacional de Angola (BNA), ao Ministério das Finanças (MINFIN), à Bolsa de Dívida e Valores de Angola (BODIVA) e às empreiteiras Soares da Costa e Teixeira Duarte pedindo informações importantíssimas. O Tribunal enviou os ofícios. Mas não esperou pelas respostas!
A magistrada Patrícia Carla de Araújo Pereira, no seu voto de vencida, escreve: “Ninguém respondeu até ao início da audiência nem durante. O Tribunal não quis saber e avançou. Mesmo sabendo que as informações solicitadas tinham mais de dez anos e por isso leva tempo a procurá-las e depois enviar tudo para o Tribunal. Impunha-se a suspensão da audiência ou mesmo o adiamento do julgamento. Não foi adiado nem suspenso. O arguido mais uma vez ficou prejudicado porque não chegaram ao Tribunal provas da sua inocência (…) considero que não estavam reunidas as condições para o encerramento da matéria de facto”.
Não menos grave. No Tribunal Colectivo as decisões são tomadas “no decurso da audiência”. Acontece que a juíza Patrícia Carla de Araújo Pereira foi acometido de doença súbita que exigiu a sua saída do Tribunal em plena audiência, na fase das alegações finais. Estava ausente quando foi feita a apresentação e discussão dos quesitos. A magistrada, que votou contra, entende – de acordo com a lei – que a sua ausência, por doença, exigia “a imediata suspensão da audiência de discussão e julgamento”. A audiência continuou ao arrepio da Lei. A magistrada judicial Patrícia Carla de Araújo Pereira foi literalmente obrigada a votar contra. Não podia assinar um Acórdão estando ausente da sala de audiências na fase das alegações finais.
O respeito que devo ao Poder Judicial impede-me de mais comentários do que os da meritíssima juíza Patrícia Carla de Araújo Pereira.
Carlos São Vicente defendeu-se em Tribunal refutando cada ponto da Acusação. Os seus argumentos são tão válidos e valem tanto como os da Acusação. Cabe ao colectivo de juízes decidir. Já foi decidido, na primeira instância. O recurso está a ser apreciado por um Tribunal Superior. O arguido disse em Tribunal que desde Maio de 2021 “estou sem o advogado que eu escolhi (…) o que viola os meus direitos de defesa. O impedimento prejudicou irreversivelmente a minha defesa.”
“O meu arquivo e das sociedades AAA está inacessível no edifício AAA da Rua Lenine, nº 58 que foi apreendido desde Setembro de 2020. Muitas informações e provas para a minha defesa estão no edifício”.
“Eu não cometi o crime de branqueamento de capitais porque nunca tive rendimentos ilícitos cuja origem tinha de ocultar ou dissimular. Todos os meus rendimentos foram lícitos, contabilizados, auditados e bancarizados. A sua origem é conhecida e legal.”
“Eu não cometi o crime de fraude fiscal. A AAA SEGUROS SA, no período de 2001 a 2018, pagou impostos e taxas ao Estado num montante total de US$ 96.706.560,88” (quase 97 milhões de dólares!)
“As tarifas do Ramo Petroquímica são Tarifas Livres Registadas (TLR) nos termos do Decreto nº 58-02 que aprovou o Sistema de Tarifas. As tarifas ficaram registadas aquando da entrega do estudo de viabilidade para o pedido de licenciamento em 2000. Numa economia de mercado os preços são definidos pela oferta e procura. Quando o vendedor e o comprador acordam em realizar uma transacção a um determinado preço livre, não faz sentido que terceiros emitam juízos sobre o preço.”
“As transferências da AAA SEGUROS SA foram para pagar Prémios de Resseguro porque os riscos da Petroquímica eram ressegurados na totalidade por resseguradoras internacionais e cativas. As transferências eram feitas pelos bancos comerciais após autorização do BNA. Cada pedido de licenciamento era composto dos documentos exigidos pelo Aviso nº 13-13 do BNA de 6 de Agosto. A ARSEG + ISS eram informados através do mapa ‘Movimento de Transacções dos Seguros e Resseguros com o exterior do país’ conforme a Circular nº 2-ISSMF-10 e das contas auditadas da AAA SEGUROS SA enviadas anualmente. O pagamento do resseguro estava previsto nos termos da alínea e) do nº 3 e do nº 1 do Aviso 13-13 de 6 de Agosto do BNA e do seu Anexo, E. Serviços de Seguros, 4. Resseguros.
É uma inverdade dizer que o Cost Oil é do Estado ou da SONANGOL e que estes pagam os prémios de seguro das concessões. O Cost Oil não é um pagamento feito pela SONANGOL ao contrário do que se tem transmitido. O Cost Oil é um mecanismo do Contrato de Partilha de Produção que permite a recuperação das despesas de exploração, desenvolvimento e produção até um determinado limite anual. Trata-se de fundos privados. Para haver petróleo teve de investir-se com fundos privados do grupo empreiteiro. A inverdade visa distorcer a realidade e fazer crer a quem não sabe, que os prémios de seguros eram pagos com fundos públicos. A verdade é outra: são fundos privados que pagam os prémios de seguros que depois são reembolsados pelo Cost Oil.”
“Nunca aprovei prémios (na Sonangol). Na sede, os prémios eram aprovados pela Direcção de Finanças. Nas subsidiárias, pela Direcção de Finanças igualmente. Nas concessões, pelo Operador e pelo Presidente da Comissão de Operações (Block Chairman), designado pela Concessionária. Nunca pedi fundos nem mandei pagar nada ao Director de Finanças. Não tive tal poder. Apenas o Conselho de Administração da SONANGOL EP tinha mandato e poder para tal”.
“A minha actividade empresarial decorreu dentro da legalidade e da livre iniciativa privada, nos termos da Constituição, do Decreto nº 39-01 e da Lei nº 14-03 (Lei do Fomento do Empresariado Nacional). Tudo o que ganhei com trabalho, voltei a investir em Angola em hotelaria e na banca.
“No dia 6.10.2020, fui visitado de surpresa no Estabelecimento Prisional de Viana e sem conhecimento dos meus advogados, por dois procuradores do Serviço Nacional de Recuperação de Activos (SENRA) que exigiram que eu entregasse todo o meu património sob pena de continuar preso por muito tempo. Senti-me extremamente intimidado mas não cedi porque o meu património é fruto do meu trabalho e da actividade que exerci legalmente durante 20 anos.”
“Eu sou inocente. Não cometi nenhum dos crimes de que sou acusado. Peço a minha absolvição total.”
O Tribunal condenou Carlos São Vicente.
A juíza Patrícia Carla de Araújo Pereira, no seu voto de vencida, afirma que “Durante o julgamento existiu uma restrição intolerável do princípio do contraditório”. E o julgamento continuou quando a meritíssima magistrada estava ausente, por doença súbita. Estamos na Páscoa mas Pôncio Pilatos já não julga ninguém. Agora essa é tarefa de técnicos e não de ocupantes, sejam romanos ou marcianos. Por isso aguardemos o resultado da apreciação do recurso interposto pelos seus advogados.
Entretanto, não condenem o empresário Carlos São Vicente ao silêncio dos inocentes.
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